A noite
estava repleta de estrelas, e apenas algumas nuvens dispersas cruzavam o céu
negro. Uma grande meia-lua observava-nos, como um olho branco semicerrado, e
conferia um brilho prateado a tudo o que era capaz de alcançar. O vento de
Inverno não se fazia sentir, tornando a noite numa das mais agradáveis até
então, mas o ar não deixava de estar gelado. O meu rosto e as mãos estavam
frios e nuvens de vapor formavam-se de todas as vezes que expirava o ar. No
entanto, a felicidade de estar a voar, sobretudo ao lado dele, e a
sensação de liberdade que aquele acto me conferia deixavam-me num estado de
leveza tal, que era como se nada me pudesse preocupar. Na verdade, qualquer
outro pensamento que pudesse ter não chegava sequer a formar-se na minha mente,
desvanecendo-se como pó.
Lentamente, deixámos o campus e
sobrevoámos a cidade. Estava coberta de branco e envolta numa anormal quietude.
As ruas estavam iluminadas pelos candeeiros que funcionavam por meio de magia,
mas não se via ninguém a pé. A cidade ocupava-se de tarefas do quotidiano ou
repousava no mundo dos sonhos, refugiada num lar de calor e de conforto e
protegida do frio do Inverno e da escuridão da noite, completamente alheia às
duas almas que a sobrevoavam, fascinadas com o que viam, como se pertencessem a
uma outra realidade e estivessem naquela apenas por passagem, a observá-la pela
primeira vez. Flutuámos sobre a cidade junto aos edifícios mais altos, tão
silenciosos que nos convencemos de que ninguém daria por nós. E tal parecia
confirmar-se a cada segundo que passava, como se sentíssemos a própria cidade a
dormir debaixo de nós enquanto voávamos. Era como se, debaixo de nós e a
envolver toda a cidade, estivesse um manto invisível, a cobri-la com silêncio e
com sossego, a impregná-la com um tipo de magia que a fazia dormir e evitar que
olhasse para o céu e se deparasse com aquelas duas almas. Senti-me como uma
espectadora, uma viajante, alguém que não tinha acesso àquele lugar. Como se,
mais do que um manto invisível, existisse também uma espécie de redoma a cobrir
a cidade e a separá-la de mim, a impedir que eu e ela, entidades pertencentes a
dois mundos diferentes, tivéssemos qualquer contacto.
Durante todo o passeio, eu e
ele não trocámos uma palavra, de tão absortos e deslumbrados com o que se estendia por baixo de nós e com a incrível sensação de voar, especialmente em
boa companhia. Depois da cidade, sobrevoámos os seus limites. As colinas e as
pequenas vilas que se espalhavam sobre elas, também adormecidas e cobertas de
branco. Os bosques e as estradas que as separavam e as florestas mais densas e
com as árvores mais altas, pelas quais deixei a minha mão aberta perpassar e
sentir as suas folhas, que persistiam em pleno Inverno. Os ribeiros que as
cruzavam aqui e ali e os sopés de gigantescas e imponentes montanhas rochosas
que se erguiam em direcção ao céu. Tudo tão silencioso, que parecia inacessível
e quase irreal, mas que, ao mesmo tempo, me deixava a imaginar uma vida de
aventuras a percorrer tais cenários.
Elevámo-nos de encontro às
nuvens antes de descermos a pique para o oceano banhado a prata pela lua, e aí
apercebi-me do quão alto era capaz de voar e de como isso não me assustava ou
preocupava, desde que o quisesse e estivesse confiante. Tal como tudo o resto,
o mar encontrava-se calmo, e a canção imparável causada pela suave ondulação
tranquilizava-me ainda mais. Aproximei-me o suficiente para inspirar aquele
odor salgado e característico e para passar as pontas dos dedos ao de leve pela
água, que rapidamente recolhi devido à diferença de temperatura. Quando as
luzes da cidade, ao fundo, se tornaram demasiado próximas, tornámos a ascender.
Atravessámos as nuvens, uma e
outra vez, subindo e descendo no ar somente para passarmos, uma vez mais, por
aquela camada de vapor de água que se assemelhava ao mais fofo algodão. Por
vezes, enquanto subia, dava meia-volta, ficando de olhos postos no céu com as
suas inúmeras estrelas e vendo-as depois a afastarem-se assim que descia e a
serem-me retiradas do campo de visão quando atravessava uma nuvem. Quando me
cansei de as furar, permiti-me rodopiar no ar ou flutuar de barriga para
cima, como tanto gostava de fazer quando me encontrava no oceano. Observava o
céu estrelado ou a paisagem lá do alto, ao mesmo tempo que, dentro de mim,
sentia a felicidade pura de uma criança.
A certa altura, senti-o atrás de mim, e deixei-me cair ao seu encontro, de costas e
lentamente. Sentei-me, de costas para ele, na parte dianteira da vassoura, que
ele me cedeu assim que me vira a aproximar-se. Não o fizera devido ao cansaço;
o misto de sensações – felicidade, alegria, divertimento, leveza, liberdade –
que crescia a cada segundo dentro de mim impedia que qualquer forma de cansaço
se manifestasse. Fizera-o para estar mais próxima dele, como que para
partilhar, com ele, aquelas sensações. Mesmo que tal não fizesse sentido algum.
Uma das suas mãos continuava a segurar o cabo da vassoura, para poder conduzi-la. Agora com o
peso de dois corpos, optou por conduzir a vassoura num voo lento e em
frente, sem um destino em particular. Continuávamos sobre o oceano, qual manto
de veludo negro ondulante, com a cidade à nossa frente, cujas construções
subiam no espaço como uma escadaria e eram intercaladas por minúsculos pontos
de luz quente e suave, que faziam lembrar pirilampos. O outro braço dele rodeou-me o ombro e a parte da frente do meu corpo, ficando a sua mão pousada
no meu ombro contrário. Assentou o queixo nesse meu mesmo ombro, ao mesmo tempo
que me puxava mais para perto de si, lenta e gentilmente. As minhas costas
ficaram contra o seu peito. Senti o seu calor, suave e reconfortante, a ser-me
transferido, bem como a sua respiração junto ao meu pescoço. O coração
martelava-se-me fortemente no peito, mas um sorriso de felicidade e de deleite
desenhou-se sem esforço no meu rosto, como que num gesto involuntário. Naquele
momento, senti-me feliz, protegida e invencível, como se não houvesse mal algum
no mundo capaz de me magoar, como se tudo fosse possível. E só quis que tudo
aquilo – eu e ele abraçados em pleno ar, sobre o oceano, com a cidade
iluminada à nossa frente, envolvidos por uma bolha de felicidade e alheios ao
resto do mundo – durasse para sempre.
Obs.: a música Walking in the Air, dos Nightwish, para além de absolutamente linda, foi uma grande fonte de inspiração para este texto.
Brutal! E um dia vai mesmo durar para sempre! *
ResponderEliminarSegundo filho!? ^^
ResponderEliminarE por falar nisso, tenho que responder ao teu último e-mail. A minha vida tem estado um caos, como podes imaginar =P
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Sim, é do segundo filho :P Que achaste? :)
EliminarOh, imagino, não te preocupes com isso :P