25/02/2015

Avó

Há algumas coisas que é melhor iniciar do que recusar, mesmo que o fim possa ser triste.
in O Senhor dos Anéis: As Duas Torres

Eu vivo num primeiro andar. E ela vivia no rés-do-chão, numa casa mesmo por baixo da minha. Eu não tinha aquela coisa do dia de fazer a visita à avó. Ela estava mesmo ali, e eu via-a todos os dias. Bastava descer as escadas, que ela estava sempre disponível para o que quer que fosse, só para nos ver felizes, nos fazer sentir bem e garantir que não nos faltava nada. E, mesmo que não descesse as escadas, ela acabava por subi-las. Subia-as a cantarolar sempre a mesma canção, vinha trazer o pão e o jornal e ficava um pouco para dois dedos de conversa.
Quando eu não estava cá, ela telefonava-me de vez em quando e ficava sempre toda contente depois de cada telefonema, mesmo que não falássemos sobre nada de especial. Ficava igualmente contente quando lhe dizia as minhas notas dos exames. Orgulhava-se. Parecia contar os dias para o meu próximo regresso, pois, de todas as vezes que falávamos ao telefone, dizia-me quantas semanas faltavam para eu voltar. E, sempre que voltava, fosse a que horas fosse, lá estava ela, acordada à minha espera atrás da janela, enrolada no seu robe vermelho. Todos os domingos, almoçávamos lá em casa, e ela tinha o cuidado de preparar pratos que eu não costumava comer lá fora e que ela sabia que eu adorava: o seu arroz de marisco divinal e as melhores cavalas assadas do mundo.
Enchia-me de orgulho ver que, a um passo dos oitenta, ela continuava a fazer a sua vida normal e que não era como tantas outras da sua idade. Andava sempre bem-disposta, cheia de vida, disposta a viver por muito mais tempo. Não era uma senhora doente, a arrastar-se pelos cantos sem forças para nada e à espera de morrer. Era precisamente o contrário. Ela só queria mais anos de vida, e foi por isso que se submeteu a uma operação ao coração, para a qual foi cheia de confiança e felicíssima. Porque pensava que tudo ia correr bem e que ia ficar a "chatear-nos" durante mais anos. Todos nós pensávamos que tudo ia correr bem.
Não me lembro de alguma vez ter chorado tanto. Tinha tido um mau pressentimento devido ao facto de a operação ter sido adiada tantas vezes; parecia um mau sinal. Achei que lhe devia ter dito que saísse daquele hospital enquanto pudesse, por causa daquele meu mau pressentimento. Senti-me tão triste por ter sido logo agora; logo agora que estava prestes a voltar para casa de vez, prestes a passar mais tempo com ela depois de tantos meses entre cá e lá. Senti tanta repulsa pelos médicos, que, em vez de salvarem vidas, parece que só são capazes de as destruir, por gostarem de brincar ao "corte e costura". Senti repulsa pelo Deus a quem ela tanto rezava e no qual depositava tanta fé e tanta esperança, por não lhe ter dado a força que ela tanto queria e por ter decidido que o melhor seria levá-la. Se é que este Deus realmente existe. Seja como for, não deixou de ser irónico. Ela só queria mais anos de vida. E isso levou-a. Muita gente é da opinião de que, se ela não tivesse sido operada, as coisas podiam ter corrido mal de qualquer maneira, e ela acabaria por nos deixar na mesma. Mas eu sei lá. Eu pensava que, agora que estava prestes a regressar, iríamos continuar com os nossos almoços aos domingos e que eu iria parar em casa dela todos os dias depois do estágio, para lhe contar como tinha sido o meu dia. Pensava que lhe ia telefonar logo a seguir à defesa da tese, para lhe dizer qual tinha sido a minha nota. Ou que estaria lá em qualquer outro momento importante, ou mesmo em simples reuniões de família. Pensava que ela iria continuar presente por mais tempo e que tudo permanecesse igual. Mas nada vai ser como era. A sua presença era qualquer coisa, e é tão difícil traduzir, por palavras, a ligação que estabelecia com todos nós. Agora, sempre que vou a sua casa, acho-a demasiado vazia, mas, mesmo passado um mês desde que nos deixou, fico sempre com a estranha (e estúpida) sensação de que ela ainda vai voltar, como se se tivesse, simplesmente, ausentado. Às vezes, ainda penso que vai subir as escadas, a cantarolar a mesma canção de sempre, para vir conversar um pouco. Faz tanta falta, demasiada falta.
Orgulhava-me olhar para ela. Ver que a idade pouco lhe afectava; que continuava a conduzir, a ir fazer as suas compras, a organizar jantares de família, a arranjar-se. Era das senhoras mais vaidosas e bem arranjadas que conheci. Proporcionou-me muito, muito boas recordações. Andava sempre alegre e a irradiar boa-disposição, cheia de vontade de viver. Mostrou-me que o verdadeiro amor existe, por ter passado quase uma vida inteira ao lado da mesma pessoa. Admirava a sua garra, a sua força e o modo como abraçava a vida. E é assim que vou sempre recordar a minha avó 

PS: Obrigada a quem me deixou mensagens de força. Força foi algo do qual precisei bastante.

5 comentários:

  1. Muita força, continua a orgulhá-la! Sei bem aquilo que sentes*

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  2. Não sei o que te dizer minha querida pois acho que tudo o que disser não te vai ajudar em nada.... Afinal o que se pode dizer nestas alturas que ajude efectivamente as pessoas a sentir-se melhor? Nada... Espero que a dor amenize, nem sei o que estás a sentir pois felizmente ainda tenho os meus avós comigo, mas imagino que seja uma dor incalculável e por isso mesmo te desejo imensa força*

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  3. Tenho apenas uma avó viva - a avó que me criou e que realmente foi a minha mãe. Ao ler o teu texto não consegui não pensar em algo que cada vez mais me assombra, conforme os anos vão passando: um dia, terei que viver sem ela. Esse é um dos piores sentimentos que já senti em toda a minha vida.
    Por isso, se bem como te sentes, e sinto-to um pouco a tua tristeza, mesmo que esta não se lhe compare. E infelizmente, não há nada que eu, nem ninguém, possa fazer para remediar essa dor. Apenas que tenhas força, porque mais nada terá qualquer sentido numa altura destas.
    *****

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  4. Apesar de já ter passado algum tempo vim só deixar-te um enorme beijinho. Estas coisas nunca são fáceis :(

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